António Sardinha: "Hora Cristã"

Hora Cristã

Ah, quantas vezes penso
quando me pede um pobre pão e abrigo,
não seja Deus que esteja ali comigo,
todo escondido em Seu poder imenso!

Ah, quantos dias, quantos,
ao ver à minha porta em trapos velhos
um rosto de miséria, como há tantos,
tenho vontade de cair de joelhos!

E lembro, ó corações empedernidos,
a história, entre as que ouvia no passado,
que mais presente me anda nos sentidos!

Deixará um lavrador em paz o arado.
Tombara a noite. Vinha regressando
ao lume, à ceia, ao tecto bem amado.

Ouve gemidos...
Triste, miserando,
morria de fraqueza, ao abandono,
alguém desfeito em anos, muito roto.
- "Ó irmãozinho, o que é lá isso? É fome? É sono?"
E a boa criatura dá-lhe o manto,
Leva-o consigo na mulinha, a chouto.

Em casa foi p'ra ele o melhor canto.
Lavou-lhe os pés, sentou-o na lareira,.
Lançou-lhe sobre a cama seda e linho,
pô-lo na sua mesa, à cabeceira.

Vai-se deitar depois o pobrezinho.
Mas lá p'la noite adentro geme, chora,
em grande queixa...
E logo, com carinho,
ergue-se o hospitaleiro sem demora.

Junto do catre, afasta-lhe a cortina...
- "Senhor,
eu sou um baixo, um duro pecador,
não vos mereço graça tão benina!"

Crucificado,
jazia numa cruz de prata fina
o pobre de há bocado.

Ó homem, corações empedernidos
fazer o bem
a quanta alminha, a quanta, necessita,
- a mãos rasgadas, sem olhar a quem!

Um pobre à nossa porta
é sempre o Senhor Deus que nos visita!

António Sardinha, in " A Epopéia da Planície"
publicado por Afonso Miguel às 20:02 | link do post | comentar