Vivemos hoje no insólito de considerarmos um feto como não sendo humano e, ao mesmo tempo, aceitarmos que um desses seres não-humanos possa vir a nascer - já devidamente humanizado! - com órgãos genitais masculinos e ser contudo acreditado como mulher, ou vice-versa. Ou seja, até às doze semanas de vida, em Portugal e em virtude da nossa condição de vida intra-uterina, todos somos ET's, ao passo que uma mulher com testículos nos parecerá, cada vez mais, a coisa mais normal do mundo. Não por acaso, o homem barbudo travestido e convencido de mulher que venceu um concurso europeu de canções nos pode parecer ainda um pequeno ser alienígena bom para circo, fruto, quiçá, de uma qualquer rememoração da sua pretensa realidade inicial de extraterrestre.
O certo é que o aborto avança num infanticídio de fazer corar Herodes e a loucura da identidade de género infiltra-se na maior das condescendências com o absurdo. O conforto, ainda que demente, de podermos não ter de aturar uma gravidez e consequentes obrigações naturais da existência de filhos, em nome de uma sexualidade libertina e de um falso direito à propriedade sobre o outro, bem como o de podermos alterar a designação sexual conforme o apetite da mente, são o supra-sumo da construção do pensamento moderno. No fundo, caminhamos para um mundo em que não mais saberemos sequer o que é um homem e uma mulher, como os distinguir e como os enquadrar nos direitos que a dignidade da sua condição humana lhes deveria garantir. Remetendo essa capacidade básica, instintiva mesmo, para o campo da concepção social, ficamos à mercê do que um futuro incerto nos ditará ideologicamente sobre a matéria. A família como base da comunidade política, a própria natureza humana e todo um edifício de pensamento jusnaturalista e metafísico postos em causa pela insanidade positivista revolucionária.
Este movimento ideológico que se apoia em cavalos de batalha partidários e de discriminação e perseguição automáticas para quem recusa trucidar a lógica, nasce, não de uma incapacidade em si, mas de uma acção deliberada sobre a consciência moral dos povos. As constituições políticas, carentes de elementos metafísicos anteriores que lhes garantam critério seguro de bem e de mal, desprovidas dessa religação aos princípios iniciais tornam-se repositórios da ideologia. Facto transversal a já quase todo o ocidente europeu, acaba por criar sim, mas à posteriori, uma incapacidade generalizada para o pensamento descomprometido e essencial à busca da Verdade. Aliás, a ideologia não detona a metafísica em si, senão aquela devidamente religiosa. Antes a substitui por uma outra, sendo certo considerar que a dialéctica materialista assenta também ela em elementos de crença.
Nesse sentido, é curioso e importante notar a própria substituição da nomenclatura nessa nova metafísica, que a tenta aproximar, na aparência, de um sentimento natural e histórico do que é ser Homem. Esse sentimento, correspondente a uma lei anterior a qualquer constituição, ou seja, correspondente àquele critério de bem e de mal que Deus imprime como capacidade racional em todos os homens, vê-se, nem a propósito, travestido, para que a aceitação dos novos pressupostos morais da ideologia seja progressiva. A virtude moral da caridade é substituída pela solidariedade; a virtude moral da paciência pela tolerância; o dogma pela ditadura do relativismo…
Quando Bento XVI falava de valores inegociáveis - da família, da vida e da educação, esqueceu-se de referir que esse valores entram em confronto com outros que, parecendo subjectivos, são também eles inegociáveis para o mundo, porque também eles filhos de uma metafísica. E esse é o drama da contradição modernista que nos apresenta a tolerância - sobretudo a tolerância - como intoleravelmente inquestionável. A sua raiz protestante, que não admite a desobediência do ateu desligado de tudo e do católico montanista sempre ligado a Roma, está na base da falsa metafísica dos direitos humanos que, ultrapassando a obediência contemporânea da espada espiritual à temporal quer estabelecer na ONU uma latinização universal da liturgia progressista. Mais, quer fazer reconhecer nessa organização e nas instâncias internacionais congéneres substitutos daquela fonte de critério moral que a Igreja foi para a civilização. A mais recente ofensiva da ONU sobre o catecismo para que este mude, à força, a sua posição sobre o aborto é bem a prova disto.
Perante uma hierarquia eclesial que cala ou que, não raras vezes, se posiciona frontalmente contra a mais salutar doutrina católica, em sintonia com o espírito do mundo e suas premissas de pensamento, o que fazer? Diante da tentativa original de Lutero de reformar a Igreja que se repete agora com pele de cordeiro, como resistir? Estou certo, caros amigos, que à parte a necessária restauração litúrgica, já que dela emana todo o espírito cristão e que só por ele se renovarão todas as coisas, à parte isso é na família, também ela escola litúrgica privilegiada da oração comunitária, que está o grande reduto da Cristandade contra o insólito da irracionalidade. Evidentemente, é ela a grande atacada pelo aborto, pela ideologia de género, pelo divórcio, pela extinção do pudor e a normalização do sexo como vício, enfim, pela relativização dogmática da existência sobre a Terra. É pois nela que a fileiras de almas devem armar-se, quais catacumbas que manterão viva a Fé. Dela sairão também os novos sacerdotes da Verdade que, um dia, romperão as trevas do mundo. Só eles travarão, a seu tempo, a decadência natural de uma era de mentira caracterizada pela divinização de todos os pecados. O corpo voltará a obedecer ao Espírito nas leis dos povos.